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terça-feira, 24 de novembro de 2009

endurecimento da pena é retrocesso na evolução social

A dureza da pena ou a certeza da punição para desestímulo da prática delituosa. O endurecimento da pena é retrocesso na evolução social ou se presta a contenção do aumento da criminalidade?


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Francisco Deliane e Silva ( * )
Pena, para Soler(1) é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos.

Com efeito, a pena, a par de apresentar a característica de retribuição, tem finalidade preventiva, no sentido de evitar à prática de novas infrações, e possui dúplice desiderato, posto que, na prevenção geral o fim intimidativo da pena dirige-se a todos os destinatários da norma penal visando impedir que os membros da sociedade pratiquem crimes, enquanto que na prevenção especial a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social, impedindo-o de delinqüir e procurando reeducá-lo.

Antolisei(2) nos ensina que são caracteres da pena: o fato de ser personalíssima; sua aplicação ser disciplinada pela Lei; ser inderrogável, no sentido da certeza de sua aplicação; e ser proporcional ao crime.

É importante lembrar que a vivência da "pena" antecede a própria existência da ciência do Direito Penal, e podemos para efeitos didáticos dividir a sua evolução em fases. Assim, em sua fase inicial: a punição consistia em reprimenda no sentido de satisfazer os deuses, que se acreditava terem sido ofendidos com a conduta que fugia ao padrão, sem se distinguir, nesta fase, o direito da moral. A pena não tinha o atributo de ser personalíssima, como nos dias de hoje. Acreditava-se que, se não houvesse a punição do responsável, este fato atrairia a ira dos deuses sobre todo o grupo social primitivo no qual ele fazia parte. Neste período predominava a vingança de sangue (Blutrache) do direito germânico, que autorizava à tribo ofendida o revide de um mal praticado por outra tribo.

Deste primeiro momento a pena evoluiu para a denominada fase da vingança privada. Assim, este segundo estágio reflete "a aplicação do que seria uma justiça pelas próprias mãos", onde cada indivíduo, utilizando seus próprios meios procurava punir quem considerava como transgressor das regras de convivência.

Os primórdios da exclusiva aplicação da pena pelo Estado, tal qual como é hoje, ocorre na denominada fase da justiça pública. Nesse período havia alguém ou um grupo de pessoas dentro de determinado corpo social responsável pela tarefa punitiva. Ora, atribuindo-se, por exemplo, exclusivo poder ao chefe da tribo ou do clã para aplicar a punição evitava-se o inconveniente que gerava a vingança privada de provocar o contra-ataque dos parentes do punido contra aquele que pretensamente ofendido tinha pessoalmente aplicado a punição. Apesar de, nesse período, a justiça não ser mais feita pelas próprias mãos, prevalecia o critério do talião (olho por olho, dente por dente). Assim, a punição a ser aplicada deveria ser tal qual a ofensa perpetrada, o que resultava, muitas vezes, em sanções cruéis.

Finalmente a fase humanitária. Com o advento do Direito Penal Moderno, ao tempo do movimento iluminista, passou-se a se tentar evitar as penas cruéis, buscando-se também uma proporcionalidade racional entre a infração e a correspondente punição, Procurando-se objetivar com a pena, além da retribuição, a regeneração do delinqüente, ou seja, a pena foi evoluindo até adquirir seus atuais atributos, quis sejam: é personalíssima; sua aplicação deve ser disciplinada pela Lei; é inderrogável, e deve ser proporcional ao crime.

Lembremos que os sistemas punitivos medievais tinham como legítimas uma grande variedade de penas corporais (açoite, decapitação, queimação, mutilação, suplícios públicos etc.). Na verdade, a literatura é farta quanto à narração das execuções públicas dos suplícios, com ampla aceitação e participação popular, ocorre, porém, que com a vitória das revoluções burguesas e a criação do Estado Constitucional Moderno, deu-se a transição da "era dos deveres" para a "era dos direitos".

Assim, a partir das declarações de direitos(3) dos séculos XVII e XVIII, deu-se a consolidação de uma série de direitos, entre eles, o direito à integridade física, consolidado através da proibição de submeter qualquer indivíduo à tortura ou a tratamento cruel ou degradante(4).

Ao se falar da pena no direito positivo brasileiro, não se pode olvidar que o direito português vigorou no Brasil durante todo o período em que nossa pátria esteve submetida ao poder lusitano(5). Com efeito, nosso ordenamento negou institucionalmente por quase quatrocentos anos(6), a cidadania aos negros e índios, instando salientar que o Livro V, das Ordenações Filipinas autorizava a prática de tortura contra eles, valendo lembrar que o direito vigorante os considerava mercadoria, no âmbito civil.

Com a Independência do Brasil, Dom Pedro I, outorgou a primeira Constituição brasileira(7), que em seu artigo 179, estabelecia a inviolabilidade dos direitos em dispositivo vazado com o seguinte teor:

Art. 179 - A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.

Das maneiras como a inviolabilidade dos Direitos Civis era constitucionalmente garantida, cumpre destacar a disposição contida no inciso XIX, do referido dispositivo da Constituição de 1824, por este estabelecer: "a abolição dos açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis".

A história nos mostra que o Código Criminal brasileiro de 1830, embora refletisse as principais idéias iluministas, não representou uma ruptura com o sistema penal anterior, em fase da necessidade de manutenção do sistema escravagista. Assim, na prática, nós tínhamos dúplice sistema, tal qual encontramos hoje, nas doutrinas do Direito Penal Clássico e do Direito Penal do Inimigo.

Com efeito, o Código Criminal, que substituiu as Ordenações Filipinas, a par de legitimar a pena de morte, acolheu em seu texto a prática de tortura, e de penas e tratamentos cruéis contra os negros, índios e peões livres, pois estabelecia em seus artigos 14, § 6º, e 50 que:

"Art. 14. - Omissis;

§ 6º - É justificável o mal cometido no castigo moderado aplicado pelo senhor ao escravo, ou o que dele resultar.

Art. 60. - Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar".

Na primeira metade do séc. XX, durante a ditadura Vargas(8), foi promulgado o Código Penal de 1940, que vigora até o dia de hoje, refletindo os ideais do direito penal moderno. Este Código consolidou a pena privativa de liberdade como a mais importante sanção penal (reclusão, detenção e prisão simples), prevendo também a aplicação da pena privativa de direitos e a pena de multa.

Saliente-se que o Código Penal de 1940, a par das penas acima citadas, introduziu as medidas de segurança na legislação brasileira, estabelecendo em seu artigo 77, o seguinte:

Art. 77. - Quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha ou torne a delinqüir.

O Estado Brasileiro, ao inserir as medidas de segurança no ordenamento jurídico, o fez negando as mesmas a natureza de pena e o atributo de possuírem caráter repressivo, asseverando que: "As medidas de segurança são medidas de prevenção e assistência social relativamente ao estado perigoso daqueles que sejam ou não penalmente responsáveis, praticam ações previstas na lei como crime(9)".

As reformas legislativas efetuadas em 1984 a par de alterar grande parte da Parte Geral revogaram toda a Parte Especial do Código Penal de 1940, não obstante a existência de tais alterações, nos dias de hoje, o Brasil ainda é regido pelo Código Penal de 1940, podendo-se afirmar, no entanto, que do ponto de vista formal, nosso Código representa o moderno direito penal.

Sucede que a insegurança social fundada no aumento da criminalidade tem encontrado no "legislador de momento" terra fértil para implantação de uma maior intervenção do Estado, por meio de seu instrumento de controle mais drástico, que é o Direito Penal, e mal direcionado para o endurecimento das penas.

Porque o Direito Penal clássico não conseguiu solucionar integralmente os conflitos da sociedade globalizada, constata-se esta tendência de ampliação e de endurecimento da pena e do sistema penal, abandonando-se, com isto os preceitos humanitários duramente conquistados na história da humanidade para cederem lugar a um punitivismo retrógrado.

Ora, não é o endurecimento da pena quem haverá de conter a escalada da violência e o aumento da criminalidade, Beccaria, em sua época, demonstrou que outros fatores, como a certeza da punição, são consideravelmente mais influentes sobre o ânimo do agente, para desestimulá-lo à prática delituosa.

Todos sabem, é até desnecessário repetir que apenas haverá reduções no alto número de práticas criminosas e, sobretudo, no elevado grau de reincidência somente com a adoção de verdadeiras políticas públicas que se preocupem com a busca da igualdade social e a ressocialização dos apenados. A situação não pode ser tão simplória. Não é só com o simples endurecimento das penas que o Estado reduzirá a criminalidade. Não é restringindo desnecessariamente as liberdades que haverá de dar segurança a sociedade. Não é o gigantesco número de Leis, ou a intensa produção legislativa a única via, ou o caminho primordial para a pacificação da sociedade assustada pela escalada da violência e a elevação dos índices de criminalidade.

Sobre o tema, Silva Sanchéz lecionando acerca da "Expansão do Direito Penal(10)", joga uma pá de cal sobre o assunto, clareando-o ao aduzir que:

"Ali onde chovem leis penais continuadamente, onde por qualquer motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se resolvam por novas leis penais ou agravando as existentes, aí não se vivem os melhores tempos para a liberdade - pois toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas conseqüências serão perceptíveis também para os que as exigiram de forma mais ruidosa".

Ademais, o endurecimento das penas, ou a inserção do princípio da incapacitação do ofensor, norteador do Projeto de Lei do Senado Federal n. 552/07, que se vir a se consubstanciar em Lei, determinará a castração química dos apenados, esbarra em sérios óbices constitucionais, por não se coadunar com um Estado de Direito, que deve atuar na conformidade dos ditames Constitucionais e em atendimento ao principio sine ira ac studio (sem ódio e sem favor), em absoluto respeito ao direito fundamental à integridade física, assim como às garantias contra penas cruéis, desumanas, degradantes e perpétuas.

Destarte, porque propugnamos pela maior preponderância das garantias individuais em face do poder punitivo estatal, é que queremos alertar sobre os males que poderão advir com essa tendência legislativa de simplório endurecimento de penas como via única de solução dos conflitos criminais.

Não acreditamos no fato de que a sociedade moderna comporte a utopia da doutrina do abolicionismo penal, mas, igualmente não cremos na veracidade das soluções apontadas pelo movimento de lei e ordem, quando defende o endurecimento das penas e a "redução de regalias(11)" aos suspeitos ou condenados pela prática de infração penal e o endurecimento das penas.



Notas:

* Francisco Deliane e Silva. Advogado. Consultor Jurídico. Professor e Conferencista. E-mail: delianeesilva@hotmail.com. [ Voltar ]

1 - Soler, Derecho Penal Argentino, Buenos Aires, Tipográfica Editora Argentina, 1970, vol. 2º, pág. 342.Voltar

2 - Antolisei, Manual de Derecho Penal, trad. Juan del Rosal e Ángel Torio, Buenos AIRES. Uteha Argentina, pág. 515.Voltar

3 - "DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO", de agosto de 1789, inspiradora do modelo de Estado plasmado na normatização constitucional desenhada na Constituição Federal do Brasil, de Outubro de 1988, a qual, em seu artigo 5.º, traz um rol de direitos individuais que representa um anteparo do elemento humano em face do poder repressivo estatal.Voltar

4 - FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: Mulino, 1999.Voltar

5 - 1500 a 1822 (Do descobrimento a independência)Voltar

6 - 1888 - Abolição da Escravatura. Voltar

7 - Constituição de 1824.Voltar

8 - Veja "Estado Novo" 1937 a 1945. Voltar

9 - CAMPOS, F. Exposição de motivos: Código Penal de 1940 Decreto-Lei 2.848, de dezembro de 1940. In: PIERANGELI, J. H. (2001). Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais. (p.405-440).Voltar

10 - SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona, Bosch Editor S.A., 1992Voltar

11 - A presunção de inocência, a liberdade provisória, o efeito suspensivo, são "exemplos" destas regalias. (Sic!).Voltar



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